sábado, 24 de maio de 2008

Discurso de Obama na Fundação Nacional Cubano-Americana

23 de maio de 2008

É meu privilégio participar das comemorações do Dia da Independência, esta semana, e render homenagem àqueles que defenderam a liberdade cubana com coragem e convicção. Vou aproveitar essa oportunidade para falar de Cuba e também da política dos EUA em relação às Américas, de maneira mais ampla.
Nós nos encontramos aqui em nosso compromisso inabalável com a liberdade. E é correto que reafirmemos esse compromisso aqui em Miami.
De muitas maneiras, Miami é um símbolo de esperança no que é possível nas Américas. A promessa de liberdade e oportunidade de Miami vem atraindo gerações de imigrantes para cá, imigrantes que às vezes trazem nada mais que a roupa do corpo. Foi uma esperança semelhante que fez meu pai atravessar o oceano, em busca da mesma promessa de que nossos sonhos não precisam ser adiados em função de quem somos, qual é nossa aparência ou nosso lugar de origem.
Aqui, em Miami, essa promessa pode unir pessoas. Sentimos orgulho comum numa democracia dinâmica e diversificada e na prosperidade conquistada com o trabalho duro. Encontramos prazer comum no beisebol, nos ritmos de nossa música e na facilidade com que as vozes passam do espanhol, francês crioulo ou português para o inglês.
Esses elos são construídos sobre uma base de história compartilhada em nosso hemisfério. Colonizados por impérios, compartilhamos histórias de libertação. Confrontados com nossas próprias imperfeições, nos une o desejo de construir uma união mais perfeita. Embora ricos em recursos, ainda nos falta derrotar a pobreza.
Aquilo pelo qual todos nós lutamos é a liberdade, conforme Franklin Delano Roosevelt a descreveu. Liberdade política. Liberdade religiosa. Mas também liberdade da carência e liberdade do medo. Naquilo que o país tem de melhor, os Estados Unidos vem sendo uma força em favor dessas quatro liberdades nas Américas. Mas, se formos sinceros, reconheceremos que em alguns momentos deixamos de tratar a população da região com o respeito que é devido a um parceiro.
Quando George Bush foi eleito, ele prometeu que isso iria mudar. Ele despertou as esperanças da região de que nosso engajamento seria sustentado, em lugar de ser fragmentado. Disse que o México era nosso relacionamento bilateral mais importante e prometeu fazer da América Latina um "compromisso fundamental" de sua presidência. Parecia que se iniciara uma nova era no século 21.
Quase oito anos mais tarde, essas grandes esperanças foram jogadas por terra.
Desde que a administração Bush lançou uma guerra equivocada no Iraque, sua política para com as Américas tem sido negligente em relação a nossos amigos, ineficaz com nossos adversários, indiferente aos desafios que importam na vida das pessoas e incapaz de promover nossos interesses na região.
Assim, não surpreende que demagogos como Hugo Chávez tenham ocupado esse vazio. Seu misto previsível mas perigoso de retórica antiamericana, governo autoritário e diplomacia de talão de cheque oferece as mesmas promessas falsas das ideologias testadas e fracassadas do passado. Mas os EUA estão tão alienados do resto das Américas que essa visão ultrapassada foi aceita sem ser desafiada, chegando a encontrar eco em países da Bolívia à Nicarágua. E Chávez e seus aliados não são os únicos que estão ocupando o vazio. Enquanto os EUA deixam de enfrentar as realidades das Américas, em transformação, outros países da Europa e Ásia --mais notadamente a China-- vêm intensificando seu próprio engajamento. O Irã aproximou-se da Venezuela, e outro dia Teerã e Caracas lançaram um banco conjunto com seus lucros petrolíferos.
É esse o histórico de atuação --o histórico de atuação da administração Bush na América Latina-- que John McCain optou por endossar. O senador McCain não fala dessas tendências em nosso hemisfério porque sabe que isso faz parte da falha mais ampla Bush-McCain de tratar de outras prioridades além do Iraque. A situação nas Américas mudou, mas nós não acompanhamos essa mudança. Em lugar de dialogar com as populações da região, vimos agindo como se ainda pudéssemos ditar regras de modo unilateral. Não propusemos uma visão clara e abrangente que seja respaldada por uma diplomacia forte. Estamos deixando de travar a batalha pelos corações e mentes. Por tempo demais, Washington vem travando debates desatualizados e seguindo roteiros velhos sobre drogas e comércio, democracia e desenvolvimento --mas esses roteiros não vão conseguir responder aos desafios do futuro.
Os trunfos não poderiam ser mais altos. É hora de reconhecermos que a segurança e prosperidade futuras dos Estados Unidos estão fundamentalmente vinculadas ao futuro das Américas. Se não deixarmos para trás a política do passado, não poderemos moldar o futuro. A administração Bush não propôs nenhuma visão clara para este futuro, e John McCain tampouco o fez.
Assim, enfrentamos uma escolha clara nesta eleição. Podemos continuar como meros observadores ou podemos liderar o hemisfério na entrada do século 21. E, quando eu for presidente dos Estados Unidos, vamos optar por liderar.
É chegada a hora de uma nova aliança das Américas. Após oito anos da política fracassada do passado, precisamos de uma liderança para o futuro. Depois de décadas pressionando pela adoção de reformas de cima para baixo, precisamos de uma agenda que promova a democracia, segurança e oportunidades de baixo para cima. Assim, minha política com relação às Américas será guiada pelo princípio simples de que o que é bom para a população das Américas é bom para os Estados Unidos. Isso significa medir o sucesso não apenas por acordos entre governos, mas também pelas esperanças da criança nas favelas do Rio, pela segurança do policial na cidade do México e pela resposta aos gritos dos prisioneiros dos cárceres de Havana.
A primeira e mais fundamental liberdade pela qual devemos trabalhar é a liberdade política. Os Estados Unidos precisam ser defensores incansáveis da democracia.
Passei parte de minha infância na Indonésia. Era uma sociedade que lutava para conquistar a democracia significativa. O poder às vezes era indisfarçado e indiscriminado. Com demasiada frequência, o poder vestia uniforme e não respondia ao povo por seus atos. Algumas pessoas ainda tinham bons motivos para temer uma batida em suas portas.
Não existe lugar para esse tipo de tirania neste hemisfério. Não existe lugar para qualquer escuridão que oculte a luz da liberdade. Aqui precisamos dar ouvidos às palavras do Dr. King, escritas de dentro de sua cela na prisão: "A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em toda parte".
Durante toda minha vida houve injustiça em Cuba. Nunca, em toda minha vida, a população de Cuba conheceu a liberdade. Nas vidas de duas gerações de cubanos a população de Cuba não conheceu a democracia. Este é o status quo terrível e trágico que conhecemos há meio século --de eleições que são tudo menos livres e justas, de dissidentes encerrados em escuras celas de prisões pelo crime de falar a verdade. Eu não vou tolerar essa injustiça, vocês não a vão tolerar, e, juntos, vamos defender a causa da liberdade em Cuba.
Agora, eu sei o que é fácil para políticos americanos fazerem. A cada quatro anos eles vêm para Miami, falam duro, retornam a Washington, e nada muda em Cuba. Foi isso o que John McCain fez outro dia. Ele juntou-se ao desfile dos políticos que fazem as mesmas promessas vazias ano após ano, década após década. Em lugar de propor uma estratégia para mudanças, ele optou por distorcer minha proposta, aderir à de George Bush e levar adiante uma política que não tem feito nada em prol da liberdade para a população de Cuba. É essa a posição política que John McCain escolheu, e tudo o que ela mostra é que não se pode levar a sério seu chamado discurso franco e direto.
Minha política com relação a Cuba será guiada por uma só palavra: "libertad". E o caminho para a liberdade para todos os cubanos precisa começar pela justiça para os prisioneiros políticos cubanos, os direitos de liberdade de expressão, liberdade de imprensa e liberdade de reunião, e esse caminho deve conduzir a eleições que sejam livres e justas.
Permita-me falar com clareza. John McCain anda percorrendo o país falando do quanto eu quero me reunir com Raul Castro, como se eu estivesse querendo um encontro social. Nunca foi isso o que eu disse, e John McCain sabe disso. Depois de oito anos das políticas desastrosas de George Bush, é hora de fazermos diplomacia direta, com amigos e adversários igualmente, sem condições prévias. Haverá preparo cuidadoso. Definiremos uma agenda clara. E, como presidente, eu estarei disposto a liderar essa diplomacia no momento e lugar de minha escolha, mas apenas quando tivermos a oportunidade de promover os interesses dos Estados Unidos e promover a causa da liberdade para o povo de Cuba.
Nunca, jamais, comprometerei a causa da liberdade. E, à diferença de John McCain, nunca, jamais, excluirei um rumo de ação que possa promover a causa da liberdade. Já ouvimos promessas vazias demais de políticos como George Bush e John McCain. Eu vou virar a página.
É hora de mais do que retórica durona que nunca rende resultados. É hora de uma estratégia nova. Não existem melhores embaixadores da liberdade que os cubano-americanos. É por isso que eu permitirei imediatamente as viagens de familiares e o envio de dinheiro à ilha, sem limites. É hora de deixar que os cubano-americanos se encontrem com seus pais e mães, seus irmãos e irmãs. É hora de deixar que o dinheiro cubano-americano torne as famílias deles menos dependentes do regime de Castro.
Vou manter o embargo. Ele nos confere a alavancagem necessária para confrontar o regime com uma opção clara: se vocês derem passos significativos em direção à democracia, começando pela libertação de todos os presos políticos, nós tomaremos medidas para começar a normalizar as relações. É assim que se podem promover transformações reais em Cuba --através da diplomacia forte, inteligente e baseada em princípios.
E sabemos que a liberdade em todo nosso hemisfério não deve limitar-se às eleições. Na Venezuela, Hugo Chávez é um líder democraticamente eleito. Mas também sabemos que ele não governa democraticamente. Ele fala do povo, mas seus atos promovem apenas seu próprio poder. No entanto, as ameaças vãs da administração Bush e suas tentativas desajeitadas de solapar Chávez apenas o têm fortalecido.
Já ouvimos de George Bush muito discurso sobre democracia, mas precisamos é de ação constante. Precisamos propor uma visão da democracia que vá além das urnas. Devemos aumentar o apoio que damos a Legislativos fortes, Judiciários independentes, imprensas livres, sociedades civis dinâmicas, forças policiais honestas, liberdade religiosa e o Estado de direito. É assim que podemos apoiar uma democracia que seja forte e sustentável não apenas no dia das eleições, mas no cotidiano da população das Américas.
É isso que se faz tão gravemente necessário não apenas em Cuba e na Venezuela, mas também a nosso sudeste, no Haiti. A população haitiana vem sofrendo há tempo demais sob governos mais interessados em conservar seu próprio poder que em promover o progresso e a prosperidade de sua população. É tempo de pressionar os líderes do Haiti para que lancem pontes sobre as divisões internas do país. E é tempo de investir no desenvolvimento econômico que terá que fundamentar a segurança que faz falta à população haitiana. E é por isso que a segunda parte de minha agenda será promover a liberdade do medo nas Américas.
Para pessoas demais em nosso hemisfério, a segurança é algo ausente de suas vidas cotidianas. E, por muito tempo demais, Washington tem estado presa num pensamento convencional com relação à América Latina e o Caribe. Da direita, ouvimos falar em insurgentes violentos. Da esquerda, ouvimos sobre paramilitares. É um debate previsível que parece algo dos anos 1980 que se congelou no tempo. Ou você é tolerante para com o comunismo ou é tolerante com esquadrões da morte. E isso está mais relacionado com a política de Washington que com combater os perigos enfrentados por tantas pessoas nas Américas.
A pessoa que convive com o medo da violência não se importa se está sendo ameaçada por um paramilitar de direita ou um terrorista de esquerda; ela não se importa se é ameaçada por um cartel de drogas ou por uma polícia corrupta. Ela se importa apenas com o fato de estar sendo ameaçada e de que sua família não pode viver e trabalhar em paz. É por isso que nunca haverá segurança verdadeira a não ser que foquemos nossos esforços no combate a todas as fontes de medo nas Américas. É isso o que farei como presidente dos Estados Unidos.
Para o povo da Colômbia, que vem sofrendo às mãos de assassinos de todos os tipos, isso significa combater todas as fontes de violência. Quando eu for presidente, vamos levar adiante o Programa Antidrogas Andino e vamos modernizá-lo para fazer frente aos desafios que evoluem. Vamos dar apoio total à luta da Colômbia contra as FARC. Vamos colaborar com o governo para pôr fim ao reinado de terror dos paramilitares de direita. Vamos apoiar o direito da Colômbia de atacar terroristas que buscam abrigo seguro para além de suas fronteiras. E vamos colocar um holofote sobre qualquer apoio às FARC que venha de governos vizinhos. Esse comportamento precisa ser exposto à condenação internacional, ao isolamento regional e, se necessário, a sanções fortes. Ele não deve ser tolerado.
Também precisamos deixar claro nosso apoio aos direitos trabalhistas e aos direitos humanos, e isso quer dizer dar apoio significativo às instituições democráticas da Colômbia. Há muito tempo demais temos deixado de dar esse apoio, especialmente o apoio ao Estado de direito. Em todos os países de nosso hemisfério --incluindo o nosso--, os governos precisam desenvolver ferramentas para proteger suas populações.
Isso porque, se há algo que aprendemos com nossa história nas Américas, é que a verdadeira segurança não pode advir unicamente da força. Não enquanto houverem cidades no México em que os senhores do tráfico forem mais poderosos que juízes. Não enquanto houverem crianças que crescem com medo da polícia. Não enquanto as drogas e as gangues se deslocarem para o norte, atravessando nossa fronteira, enquanto armas e dinheiro são enviados para o sul.
Este nexo constitui um perigo para todos os países da região --incluindo o nosso. Milhares de membros de gangues centro-americanas vêm sendo presos nos Estados Unidos, incluindo aqui, no sul da Flórida. Guatemala, El Salvador e Honduras enfrentam emergências nacionais. Os cartéis de drogas mexicanos aterrorizam cidades grandes e pequenas. O presidente Calderón estava certo ao dizer que basta. Precisamos apoiar o esforço do México de reprimir. Mas precisamos representar mais que a força --precisamos apoiar a observância das leis de baixo para cima. Isso significa mais investimentos na prevenção e na promotoria, no policiamento comunitário e em Judiciários independentes.
Concordo com meu amigo, o senador Dick Lugar: a Iniciativa Merida não investe o suficiente na América Central, onde tem início boa parte da atividade do narcotráfico e das gangues. E precisamos agir mais ao sul, também. É hora de colaborarmos para identificar as práticas que dêem melhor resultado em todo o hemisfério, adaptando abordagens para cada país. É por isso que orientarei meu secretário de Justiça e secretário de Segurança Nacional a dialogarem com seus colegas nas Américas durante meu primeiro ano na presidência. Vamos buscar uma união de esforços. Vamos fornecer os recursos e pedir que todos os países façam o mesmo. E vamos vincular nosso apoio a critérios claros de apreensões de drogas, julgamentos por corrupção, redução da criminalidade e prisão de chefões da droga.
Precisamos fazer nossa parte. E é por isso que uma parte crucial desse esforço será uma estratégia de norte para sul e de sul para norte. Precisamos de segurança intensificada na fronteira e de uma ênfase maior na prisão de gangues e traficantes que atravessam nossa fronteira. Mas também precisamos tratar do material que é enviado para o sul. Como presidente, deixarei claro que vamos combater as armas, vamos combater a lavagem de dinheiro e vamos combater os veículos que possibilitam essa criminalidade. E vamos reprimir a demanda de drogas em nossas próprias comunidades e restaurar o financiamento de forças-tarefas para o combate às drogas e para o programa COPS. Se quisermos garantir a segurança na região, precisaremos vencer a luta em nossas próprias ruas.
A terceira parte de minha agenda consiste em promover a liberdade da pobreza, porque há muito que podemos fazer para promover oportunidades para a população das Américas.
Isso começa pela compreensão do que mudou na América Latina e do que não mudou. Foi criada riqueza enorme, e os mercados financeiros estão muito mais fortes do que eram há dez anos. A economia brasileira vem crescendo aos saltos, e a pessoa que talvez seja a segunda mais rica do mundo é mexicana. No entanto, apesar de ter ocorrido progresso econômico grande, ainda existem desigualdades gritantes. Apesar de uma classe média crescente, 100 milhões de pessoas ainda vivem com menos de US$2 por dia e 40% dos latino-americanos vivem na pobreza. Isso alimenta desde o narcotráfico até a migração, passando pelo apoio a líderes que apelam para os pobres sem cumprir as promessas que fazem.
É por isso que os Estados Unidos precisam representar o crescimento de baixo para cima nas Américas. Isso começa em casa, com uma reforma abrangente da imigração. Isso significa garantir a segurança de nossa fronteira e aprovar leis mais duras para os empregadores. Significa tirar das sombras 12 milhões de imigrantes não autorizados. Mas também significa trabalhar com o México, a América Central e outros para apoiar o desenvolvimento de baixo para cima da região que fica a nosso sul.
Por 200 anos os Estados Unidos deixaram claro que não toleraremos intervenção estrangeira em nosso hemisfério. Mas uma guerra de tipo diferente é travada todos os dias em toda parte das Américas --não contra exércitos estrangeiros, mas contra a ameaça mortal da fome e da sede, das doenças e da desesperança. Este não é um futuro que devamos aceitar --nem para a criança em Porto Príncipe ou para a família do planalto peruano. Podemos fazer melhor. Precisamos fazer melhor.
Não podemos ignorar o sofrimento que ocorre ao nosso sul, nem devemos representar a globalização da barriga vazia. A responsabilidade cabe aos governos da região, mas nós também precisamos fazer nossa parte. Eu aumentarei substancialmente a assistência que damos às Américas e adotarei as Metas de Desenvolvimento do Milênio de reduzir a pobreza global pela metade até 2015. Vamos apoiar o crescimento de baixo para cima por meio do microfinanciamento, do treinamento vocacional e do desenvolvimento das pequenas empresas. É hora de os Estados Unidos mais uma vez serem um farol de esperança e uma mão que oferece ajuda.
O comércio precisa ser parte dessa solução. Mas rejeito com firmeza a visão de Bush e McCain de que qualquer acordo comercial é bom. Não podemos aceitar o comércio que enriqueça aqueles que ocupam o topo da escada, ao mesmo tempo cortando fora os degraus inferiores dela. É hora de compreender que a meta de nossa política comercial precisa ser um comércio que funcione para as populações de todos os países. Como os bispos centro-americanos, fui contra o CAFTA porque as necessidades dos trabalhadores não foram adequadamente previstas. Apoiei o Acordo de Livre Comércio com o Peru porque ele continha dispositivos trabalhistas e ambientais que tinham que ser obedecidos. É esse o tipo de comércio que precisamos --um comércio que favoreça os trabalhadores, e não apenas os lucros das empresas.
Não há nada de protecionista em exigir que o comércio dissemine os benefícios da globalização, em lugar de dirigi-los a interesses especiais enquanto defraudamos trabalhadores em nosso país e no exterior. Se John McCain acredita, como disse outro dia, que 80% dos americanos pensam que estamos no rumo errado porque não aprovamos o livre comércio com a Colômbia, ele está totalmente fora de contato com o pensamento do povo americano. E, se John Mccain pensa que podemos tentar disfarçar nossa ausência de liderança na região, de vez em quando aprovando acordos comerciais com governos amigáveis, então ele está fora de contato com a população das Américas.
E precisamos buscar maneiras de fazer nossas economias crescer e de aprofundar a integração para além dos acordos comerciais. É isso o que a China está fazendo neste momento, construindo pontes de Pequim ao Brasil e ampliando seus investimentos em toda a região. Se os Estados Unidos não derem um passo à frente, correremos o risco de ficar para trás. E é por isso que precisamos aproveitar uma oportunidade única para liderar a região em direção a um futuro energético mais seguro e sustentável.
Todos nós estamos sentindo o impacto da crise energética global. No curto prazo, isso significa uma dependência cada vez mais cara do petróleo, que financia o autoritarismo dos petrodólares em todo o mundo e faz subir o custo de tudo, desde um tanque de gasolina até o jantar sobre a mesa. No longo prazo, poucas regiões correm mais perigos das tempestades mais fortes, enchentes maiores e secas devastadoras que podem acompanhar o aquecimento global. Safras inteiras podem desaparecer, colocando em risco o suprimento de alimentos para centenas de milhões de pessoas.
Ao mesmo tempo em que compartilhamos esse risco, também compartilhamos os recursos necessários para fazer algo a respeito. É por isso que pretendo reunir os países da região numa nova Parceria Energética para as Américas. Precisamos ir além dos acordos bilaterais. Precisamos de uma abordagem regional. Juntos, podemos abrir um caminho rumo ao crescimento sustentável e a energia limpa.
A liderança precisa começar em casa. É por isso que propus um sistema de tetos e comércio para limitar nossas emissões de carbono e investir em fontes alternativas de energia. Vamos autorizar os emissores industriais a contrapor uma parte deste custo, investindo em projetos de energia com baixa emissão de carbono na América Latina e no Caribe. E vamos aumentar nas Américas as pesquisas e o desenvolvimento de tecnologia limpa de carvão e da próxima geração de biocombustíveis não feitos de plantas alimentícias, e também na energia solar e do vento.
Vamos convocar a ajuda do Banco Mundial, da Organização dos Estados Americanos e do Banco Interamericano de Desenvolvimento para apoiar esses investimentos e assegurar que esses projetos promovam a conservação de recursos naturais como terra, fauna, flora e florestas. Vamos finalmente implementar os padrões ambientais em nossos acordos comerciais. Vamos criar com o Departamento de Energia e nossos laboratórios um programa de partilha de tecnologia com países de toda a região. Vamos avaliar as oportunidades e os riscos da energia nuclear no hemisfério, discutindo o assunto com o México, Brasil, Argentina e Chile. E vamos convocar a população americana a juntar-se a esse esforço através de um Corpo Energético de engenheiros e cientistas que irão ao exterior para ajudar a desenvolver soluções de energia limpa.
Esse é o papel singular que os Estados Unidos podem exercer. Podemos oferecer mais que a tirania do petróleo. Podemos aprender com os progressos feitos num país como o Brasil e, ao mesmo tempo, fazer das Américas um exemplo para o mundo. Podemos oferecer uma liderança voltada à prosperidade comum e à segurança comum de toda a região.
Essa é a promessa das Quatro Liberdades de Franklin Delano Roosevelt, que precisamos concretizar. Mas apenas se reconhecermos que, no século 21, não podemos tratar a América Latina e o Caribe como sócio minoritário, do mesmo modo como nossos vizinhos ao sul precisam rejeitar o palavreado bombástico dos fanfarrões autoritários. Uma aliança das Américas só irá funcionar se for fundamentada num alicerce de respeito mútuo. É hora de virar a página da arrogância de Washington e do antiamericanismo em toda a região, que criam obstáculos ao progresso. É hora de ouvirmos uns aos outros e aprendermos uns com os outros.
Para cumprir essa promessa, minha administração não vai esperar seis anos para proclamar um "ano do engajamento". Vamos promover com as Américas uma diplomacia agressiva, sustentada e baseada em princípios desde o primeiro dia do governo. Vou reinstaurar em minha Casa Branca um enviado especial para as Américas que irá contar com meu pleno apoio para seu trabalho. Mas também vamos ampliar o serviço diplomático e abrir mais consulados nas regiões das Américas que ficaram esquecidas. Vamos ampliar o Corpo de Paz e pedir a mais jovens americanos que viagem para fora do país para aprofundar a confiança e os laços entre nossos povos.
E vamos buscar usar o recurso imenso de nossa própria população imigrante para fazer avançar cada parte de nossa agenda. Um dos aspectos perturbadores da política americana recente vem sendo o aumento do sentimento antiimigrantes, que vem sendo explorado por políticos na época das eleições. Precisamos entender que a imigração --quando feita legalmente-- é uma fonte de força para este país. Nossa diversidade é uma fonte de força para este país. Quando nos unimos --negros, brancos, hispânicos, asiáticos e indígenas americanos-- não há nada que não sejamos capazes de realizar. Somos todos americanos!
Juntos, podemos escolher o futuro em lugar do passado.
Numa época em que nossa liderança vem sendo prejudicada, não tenho dúvidas de que podemos conseguir. Se os Estados Unidos apresentarem seus argumentos, se dialogarmos com aqueles que duvidam ou zombam de nós; se recorrermos a nossa tradição melhor, a da defesa daquelas Quatro Liberdades, então poderemos moldar nosso futuro, em lugar de sermos moldados por ele. Poderemos renovar nossa liderança no hemisfério. Poderemos conquistar o apoio não apenas dos governos, mas dos povos das Américas. Mas isso só será possível se deixarmos o discurso arrogante e ameaçador para trás. Apenas se formos fortes e perseverantes, confiantes e coerentes.
José Martí escreveu certa vez: "Não basta sair em defesa da liberdade com esforços épicos e intermitentes, quando a liberdade é ameaçada em momentos que parecem críticos. Cada momento é crítico para a defesa da liberdade."
Cada momento é crítico. E este precisa ser nosso momento. Liberdade. Oportunidade. Dignidade. Esses não são apenas os valores dos Estados Unidos --são os valores das Américas. Eles foram a causa da infantaria de Washington e da cavalaria de Bolívar, da pena de Martí e dos sinos de igreja de Hidalgo.
Esse legado é nossa herança. Essa deve ser nossa causa. E agora precisa ser o momento em que viramos a página para abrir um novo capítulo na história das Américas.

Tradução de Clara Allain

A descolonização da América Latina e os direitos indígenas


Se revisarmos a história, recordaremos que, no período colonial, os colonizadores diziam que os índios não tinham alma. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que um índio fosse eleito presidente democraticamente.

Boaventura de Sousa Santos

O Equador, no momento atual, se caracteriza pelo fato de que as forças progressistas assumiram a bandeira empunhada pelo movimento indígena na década de 90 para a elaboração de uma nova Constituição, que reconheça a diversidade de uma maneira profunda através da plurinacionalidade. Os avanços nos últimos 20 anos permitiram passar da invisibilidade à visibilidade, da resistência à proposta e agora da interculturalidade à plurinacionalidade. É importante levar isso em conta para se analisar o atual processo constituinte. A Constituição é simplesmente um papel que foi fonte de frustração durante muito tempo. Vários direitos foram incluídos, porém, os povos continuam sendo excluídos, empobrecidos, invisibilizados e oprimidos. Estamos diante de um novo tipo de constitucionalismo, que implica um diferente projeto político de país, outra forma de cultura, de convivência, de territorialidade, de institucionalidade do Estado. Trata-se de uma nova época, interessante, mas muito difícil, já que existem muitos inimigos internos e externos que estão muito bem organizados. Lamentavelmente, as forças progressistas não se organizam tão bem como seus opositores. O atual modelo de Estado é homogeneizador porque implica uma só nação, cultura, direito, exército e religião. Essa idéia de homogeneidade predomina nas cabeças das elites, da cultura e até nas forças progressistas, que são ou podem ser aliadas nesse processo. Daí a importância em defender outro tipo de unidade na diversidade, que não seja simplesmente aceita, senão celebrada. A unidade não tem porque ser homogênea e tampouco a diversidade tem que significar desintegração. Esses são os desafios que deve enfrentar a nova Constituição, para que efetivamente o atual processo político implique uma importante ruptura com o colonialismo que não terminou com as independências. As diversas iniciativas políticas que estão emergindo no continente só podem ser entendidas reconhecendo a existência de um profundo racismo na sociedade. Por exemplo, não podemos entender os conflitos na Bolívia sem antes recordar que, para suas elites, um índio é só um índio, e não concebem que tenha chegado a ser presidente, pois, segundo elas, não é competente. Se revisarmos a história, recordaremos que na colônia acreditavam que os índios não tinham alma, e foi um papa, em 1537, quem teve de reconhecer que tinham. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que um índio fosse eleito presidente democraticamente. Na Venezuela também existe racismo, basta observar muitas das críticas lançadas contra o presidente Hugo Chávez, que o chamam de macaco e de não pertencer às elites brancas da sociedade dominante. Por isso a importância do reconhecimento da continuidade do colonialismo e de que, no processo constitucional, a plurinacionalidade é um ato de pós-colonialismo que rompe com essa herança colonial. A independência foi dada, concebida, conquistada pelos descendentes dos colonizadores, não pelos povos originários, quer dizer, não foi realmente descolonizadora. Na África, aconteceu o contrário, as independências se deram por territórios, pelos povos originários, com exceção da África do Sul, que conquistou sua independência em meados dos anos 90. Esse novo tipo de constitucionalismo é importante, porém não é exclusivo da América Latina. No mundo existem vários países, como Canadá, Suíça, Bélgica e Espanha, que se reconhecem como plurinacionais. Não se entende, portanto, por que o drama, o enfrentamento e as dúvidas. Em uma reunião do SENPLADES (Secretaria Nacional do Planejamento e Desenvolvimento), à qual fui convidado, ficaram preocupados que a plurinacionalidade desintegrasse e destruísse o país, como também ficou um jornal de grande circulação no Equador, e lhes expliquei porque não devem ter medo. Primeiro, a plurinacionalidade tem como objetivo descolonizar o país, devido a essa herança colonial. Segundo, exige outra concepção do território e do controle dos recursos naturais. É ali que surgem os temores com respeito à propriedade da terra, o controle dos benefícios e lucros que produzem os recursos naturais. Esse processo político significa uma nova visão de país, uma refundação do Estado equatoriano. Bolívia e Equador estão inventando outro tipo de Estado, um modelo que merece novas instituições e novos territórios com um marco político diferente, que permita passar do discurso à prática e cujas mudanças se reflitam de maneira visível. A plurinacionalidade é um ato fundacional ou de refundação do Estado e todos os outros atos fundacionais são de transição. Passar das velhas estruturas à construção de novos estados é um processo de transição que não é unicamente político, senão cultural e que pode provocar enfrentamentos, como está acontecendo no Equador e na Bolívia. São choques de memória entre aqueles que não podem esquecer e os que não querem lembrar. Esta confrontação, que não é política, mas também cultural, exige que se construa outro tipo de memória. O novo modelo de Estado implica uma nova institucionalidade, outra territorialidade, mas também outro modelo de desenvolvimento. Daí a importância das concepções indígenas, que estão ganhando terreno porque vão além das reivindicações puramente étnicas. Hoje em dia, o ponto de vista dos povos indígenas é importante no continente e não somente para eles, como também para todo o país, pois o atual modelo de desenvolvimento está destruindo os recursos naturais, o meio ambiente, contaminando a água, particularmente no Equador, como é o caso da Texaco, que durante 30 anos causou pobreza, destruição ambiental e contaminou as águas. Este é um velho modelo e é possível que as palavras do ‘desenvolvimento’ não sejam as mais adequadas. Então, por que não utilizar a palavra ‘reviver’, que tem uma conotação muito mais profunda e que significa uma relação diferente com Pacha Mama? O conceito de natureza é muito pobre comparado com o de Pacha Mama, mais profundo e rico, pois implica harmonia e cosmovisão. Os indígenas colombianos costumam dizer "o petróleo é sangue da terra, é nosso sangue, nossa vitalidade, se nos tiram o sangue, nos matam". Esta concepção, que para os povos indígenas é muito natural, começa a ter outra aceitação. Não está em jogo só uma crise do capitalismo, mas também a sobrevivência da humanidade, caso se mantenha o atual modelo de desenvolvimento Este ato refundacional tem uma enorme potencialidade para o estabelecimento de relações mais amplas e o movimento indígena tem de estar preparado para a construção de novas alianças. Trata-se também de outro modelo de democracia, porque a atual é muito excludente e marginalizou as grandes maiorias da mesa de negociações e decisões. Portanto, é necessário democratizar a democracia com novas formas de participação, mais inclusivas, podendo ser de origem ocidental, como a democracia participativa, ou de origem comunitária, como as formas indígenas. A Constituição boliviana, por exemplo, distingue entre democracia representativa e democracia partidária e comunitária. A democratização da democracia vem acompanhada de outro processo interessante que é o da ‘cidadanização’ da cidadania, ou seja, a ampliação da cidadania a formas de cidadania intercultural junto de diferentes formas de pertencimento. Quando me perguntam se a plurinacionalidade pode colocar em risco a unidade do país, respondo rotundamente que não, pois essa é minha larga experiência com os movimentos indígenas deste continente, que, basicamente, mostram duas coisas: os povos indígenas são originariamente transnacionais, como é o caso dos aymaras, quéchuas, mapuches, que foram divididos em vários países e agora são chilenos, argentinos, peruanos, equatorianos ou bolivianos.Em segundo lugar, eles reconhecem simultaneamente sua identidade nacional indígena e também a cidadania de seu país. Além do mais, mantiveram lealdade a seus países em guerras fronteiriças, participando com muita valentia de exércitos nacionais. Um exemplo desse duplo pertencimento podemos observar no Canadá, onde não é o mesmo ser canadense para um branco e para um indígena. Mesmo assim, todos, de maneira muito distinta, são canadenses. Existem várias maneiras de pertencimento e, portanto, formas de convivência. A unidade na diversidade é uma nova solidariedade social, que pode ter um impacto muito forte nos territórios e recursos naturais. Podem produzir-se enfrentamentos, porém nas rupturas também existe continuidade. Por isso é importante que esses conflitos sejam controlados dentro de um marco pacífico e democrático. Passar da interculturalidade à plurinacionalidade é um salto muito grande, mas também nisso se dá uma continuidade. A atual Constituição Política do Equador estabelece as circunscrições indígenas, porém estas, lamentavelmente, não foram regulamentadas. Quando insistem no risco de que a plurinacionalidade pode enfraquecer a unidade nacional, pergunto-me: aonde estão as provas, os resultados desses fenômenos? Pelo contrário, o agronegócio e grandes latifundiários de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, que defendem o separatismo, é que constituem um grave perigo para a unidade do Estado. Portanto, a desintegração não vem dos povos indígenas. O objetivo da plurinacionalidade não é somente a idéia do consenso, mas também do reconhecimento das diferenças, de outra forma de cooperação nacional com unidade na diversidade. É um ato de justiça histórica que não pode ser resolvido como um problema de geometria da democracia representativa. Qual a quantidade de indígenas neste país, 30, 20, 7 mil pessoas? Quanto menor a quantidade, mais demonstrado fica o nível de extermínio e, portanto, que a plurinacionalidade tem de ser mais profunda. Um desafio para a institucionalidade é compatibilizar a igualdade com a diferença. Difícil, mas não impossível.
* Originalmente publicado em http://alainet.org/ - Traduzido por Gabriel Brito. Intervenção realizada no Encontro Internacional "Povos Indígenas, Estados Plurinacionais e Direito à Água", em março de 2008, Quito, Equador.